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Ponto de Leitura Biblioteca Abdias Nascimento

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Fazenda Coutos é o bairro mais negro de Salvador


SALVADOR



Fazenda Coutos é o bairro mais negro de Salvador; Liberdade fica em 54º lugar

Dentro do contingente de 24 mil habitantes do bairro, os negros são 90,57% da população local. Por isso, hoje, Fazenda Coutos pode ostentar o título de bairro mais negro de Salvador

“Pode olhar, quem tem a pele clarinha é de fora!”. Parece extremista, mas se você olhar mesmo pelas ruas do bairro de Fazenda Coutos, vai ver que a feirante Maria Cremilda dos Santos, 32 anos, não está enganada. Encontrar a tal “pele clarinha” é difícil. “Tenha certeza de uma coisa: meu bairro é negro e eu também”, disse, orgulhosa. 

Maria Cremilda está entre os 21.967 moradores de Fazenda Coutos que se definem como negros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dentro do contingente de 24 mil habitantes do bairro, os negros (tecnicamente definidos pela soma dos que se declararam ao IBGE como pretos ou pardos no Censo de 2010) são 90,57% da população  local. Por isso, hoje, Fazenda Coutos pode ostentar o título de bairro mais negro de Salvador — atrás somente de Ilha de Maré, com 92,99% de negros entre os 4.236 habitantes.

É, esqueça a Liberdade... O bairro que, por muito tempo, foi considerado o mais negro da cidade – e, diziam alguns, até da América Latina – ocupa a 54ª posição, em números relativos ao tamanho da população: 85,41%.  Se considerarmos apenas os números absolutos, vá lá... A Liberdade fica em 10º lugar, com 35.704 negros. Mas, seguindo essa lógica, Pernambués tem o maior número de negros – são mais de 53 mil. No entanto, eles representam 82,45% da população de 64.983 habitantes. 

“Raça e cor têm a ver com quanto a comunidade se identifica. Bairros como a Liberdade podem ter representação sobre identidade negra mais evidenciada, mas bairros com mais pessoas com pele preta ou parda não são esses de referência”, diz o coordenador de disseminação de informações do IBGE, Joilson Rodrigues.

Fazenda Coutos pode não ter a tradição de resistência negra, mas, para a doméstica Telma Regina, 42, que mora lá há 30 anos, não há como negar a realidade local. “Aqui, não tem pessoas ‘parmalat’, de pele branca, cabelo liso e olhos claros. Se tiver, são só gatos pingados”, brincou. “O bom é que todo mundo é igual e ninguém trata ninguém com indiferença”.

Orgulho e carência
Para quem nasceu ali, a verdade é uma só: os moradores têm mais orgulho de se definir como negros. “Algumas pessoas podem até não perceber, mas estão amadurecendo mais e entendendo quem são. A cultura negra ajuda, a música negra, como o rap e o samba, tudo ajuda... Muitas crianças daqui cresceram com a capoeira e isso tem passado de pai para filho”, comentou o pensionista Roberto Chagas, 37, que foi morar lá “ainda bebê”. 

Mas, apesar de tudo, a infraestrutura e os serviços públicos no bairro ainda ficam devendo... As queixas dos moradores vão desde a falta de áreas de lazer até a insegurança – ainda esta semana, duas escolas da rede municipal suspenderam as aulas, depois que traficantes rivais entraram em confronto.  “Fazenda Coutos é um bairro muito discriminado por conta da violência. Mas é um bairro em que a negritude está enraizada e, disso, temos orgulho”, disse o autônomo Alan Matos, 30. 

Na verdade, o que tem acontecido em Fazenda Coutos é uma tendência no resto do país, para a professora de Sociologia da Ufba Paula Barreto, coordenadora do grupo de pesquisa A Cor da Bahia.  

“Como (o Censo) é autodeclaração (a pessoa pode declarar a cor que quiser), acredito que o debate mais constante e a maior visibilidade que temos dado às questões da negritude e do racismo tenham feito com que cada vez mais pessoas deixem de negar sua cor”, explicou Paula. 

Até o início dos anos 2000, o que acontecia era exatamente o contrário: a tendência era que as pessoas afirmassem que eram de uma cor mais clara do que a sua. “Isso acabava inflando a categoria branca, porque ninguém queria ser negro. Agora, as pessoas estão mudando a maneira como se classificam e um dos aspectos dessa afirmação do ser negro passa pela pessoa assumir as características físicas que têm”. 

Resistência
Só que, mesmo com as estatísticas  do IBGE, o título de Fazenda Coutos é questionável para alguns... Para Antônio Carlos Santos, o Vovô do Ilê Ayê, por exemplo, o posto ainda é da Liberdade. “Isso é uma forma de tentar enfraquecer, porque a Liberdade tem mais consciência de luta. Com todo respeito ao pessoal dos outros bairros, mas o grito daqui contra o racismo é mais forte”. 

Ele diz que uma das possíveis explicações para o resultado seriam as divisões que o IBGE considera. De fato, Liberdade e Curuzu são considerados como bairros separados, pelo Censo. No entanto, isso não muda muita coisa. Se somássemos o total dos dois, o bairro ainda não seria o maior: o percentual seria de 85,68%.

Bairros do Subúrbio são mais negros; ocupação começou em 1960

Fazenda Coutos não é o único bairro do Subúrbio Ferroviário em que o número de moradores que se declaram negros é alto. Logo em seguida, vem Rio Sena (90,30% da população  preta ou parda), Moradas da Lagoa (90,12%), Lobato (89,62%)...
Fazenda Coutos lidera, mas Top 20 tem vários bairros do Subúrbio (Foto: Marina Silva/Arquivo Correio)

A ocupação dessa região, segundo a professora do curso de Urbanismo de Universidade do Estado da Bahia (Uneb) Liliane Mariano, começou na década de 1960, com o início da industrialização na cidade. “Houve uma migração muito grande do campo para a cidade. No início, a construção civil absorveu essa mão de obra. Depois, eles passaram a fazer atividades informais não qualificadas e começaram a ocupar o Subúrbio. Ali era uma área esquecida pelo poder público, que só na última década começou a olhar para lá. Tinha pouco valor para o mercado imobiliário, porque tem muitas encostas e é desqualificada para habitação. Por isso, o mercado imobiliário se interessou pela Orla Atlântica e pela região do Iguatemi”. 

Essas outras regiões, como o Itaigara, a Vitória, a Graça e o Caminho das Árvores, são os bairros onde há menos negros (índices de 34,49%, 36,42%, 37,82%, e 38,03%, respectivamente). Segundo a secretária municipal da Reparação, Ivete Sacramento, até 2002, não houve nenhum tipo de medida afirmativa que ajudasse a mudar esses números - até a implantação das cotas raciais nas universidades públicas.

“Infelizmente, a pobreza tem cor. E onde tem menos negro é onde tem uma economia mais elevada. Até o material que se usava nas obras dos bairros periféricos era diferente dos bairros nobres. Agora, estamos mudando isso”. Para a secretária, a consciência negra deve ser instituída desde os primeiros anos de escola. “Salvador é uma cidade com 79% de negros. Nós temos que ver esse colorido em toda parte”.
Fonte: www.correio24horas.com.br

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